(Texto produzido para a apresentação da edição brasileira do livro Dez mitos sobre Israel, de Ilan Pappe)

Foi com grande entusiasmo que recebi o convite da editora Tabla para colaborar na revisão terminológica da tradução de Dez mitos sobre Israel e apresentar o livro ao leitor brasileiro. Reconhecido mundialmente, Ilan Pappe é um dos mais importantes historiadores da questão israelo-palestina. O autor — que foi aluno de Albert Hourani em Oxford —, com quem encontrei em duas ocasiões, é, além disso, uma pessoa de muita simpatia e enorme dedicação. Seus livros não são apenas rigorosamente elaborados, mas refletem um pesquisador que se entrega, vida e alma, ao esforço de intervir no conflito por meio do conhecimento. Dessa forma, contribuir com o esforço de entregar ao público um livro que faz a diferença é para mim uma satisfação.

O primeiro livro de Ilan Pappe a ganhar uma edição brasileira foi A limpeza étnica da Palestina (Sundermann, 2017). A obra é reflexo de um importante trabalho de arquivo e, segundo me relatou o próprio autor, seu livro primordial. Mas a escolha deste que agora a Tabla entrega ao público é muito oportuna. Aqui, ao contrário de em A limpeza étnica, encontramos Pappe em um de seus momentos mais soltos. A escrita é fluida, sem muitas citações, mas apresenta referência erudita e comentários a respeito de alguns dos títulos mais recentes e relevantes sobre a história da região e das questões tratadas aqui.

A estrutura do livro — que desconstrói capítulo a capítulo os mitos da história oficial israelense — não é original a não ser pela particular e atualizada seleção dos dez mitos a serem abordados e sua eficaz organização em três seções temporais, que ajudam o leitor a se orientar pelos assuntos. O esforço de contraposição aos mitos é extremamente relevante e tem sido feito desde o início da guerra das narrativas, ainda nas décadas de 1950–60, quando, por exemplo, autores como Walid Khalidi provaram, através dos arquivos radiofônicos britânicos, que jamais houve um chamado das lideranças árabes para que a população saísse de suas casas e terras; ou como Salman Abu Sitta, que mapeou os 530 vilarejos varridos do mapa em 1947–48, e se dedica a demonstrar que há sim espaço para que os refugiados palestinos retornem às suas terras sem que seja preciso expulsar os judeus que hoje vivem na região.

Neste volume também chama a atenção o estilo, a profundidade da análise, o mergulho na história e a riqueza de informação. Ilan Pappe não se repete. Não encontramos aqui a detalhada e exaustiva explanação da Nakba feita em A Limpeza étnica da Palestina, nem a análise dos primórdios do nacionalismo palestino presente em seu livro História da Palestina moderna (publicado em Portugal), ou a visão da guerra de 1967 abordada na mesma obra.

Em certas passagens, a análise de Pappe consegue reverter completamente o senso comum sobre determinado episódio. Exemplo disso é a sua visão sobre o controverso mufti de Jerusalém, Hajj Amin al-Husayni. O autor dedica algumas páginas a este que foi a principal liderança palestina durante todo o mandato britânico, concluindo com genialidade que, se o líder palestino deve ser criticado, é antes pelo seu papel de representante das elites, que ignorou (eu diria, até mesmo, boicotou) as causas populares palestinas e o movimento dos camponeses e dos trabalhadores, do que por qualquer possível inclinação estratégica pró-Alemanha nazista que ele possa ter nutrido durante alguns anos da luta anticolonial contra nada menos que o Império Britânico.

Em todos os casos, Dez mitos sobre Israel representa um avanço, uma atualização à luz da historiografia mais recente, ou simplesmente um novo enfoque, algo que faltava e que com certeza o autor decidiu que era chegado o momento de tratar.

A recepção deste livro no Brasil não será a mesma da Inglaterra, onde Ilan Pappe reside desde que deixou sua cidade natal, Haifa, ou dos EUA, onde a batalha das narrativas é também muito intensa. No Brasil, tem-se a nítida impressão de que partimos de um patamar de vantagem, já que nunca colonizamos as terras árabes e nunca tivemos pretensões imperialistas sobre a Palestina. Pelo contrário, sem generalizar, podemos dizer que boa parte da sociedade brasileira compartilha certa visão de periferia do mundo, de vidas exploradas, mal representadas, que nos permite uma ideia mais evidente da condição palestina e uma maior empatia. Ademais, o grau de conhecimento sobre a questão israelo-palestina cresceu muito desde os ataques às torres gêmeas. Foi o efeito reverso da subsequente campanha de difamação do “árabe e islâmico”. Ela despertou um maior interesse pelos povos árabes, por sua história, sua cultura e suas crenças, e pelo conflito palestino de que tanto se fala.

A sociedade brasileira, todos sabem, é composta por alguns milhões de descendentes de árabes, principalmente libaneses, sírios e egípcios, mas também palestinos. Trata-se de uma população espalhada de norte a sul, leste a oeste, descendente de imigrantes que fugiam da miséria e de guerras e conflitos que irromperam no final do século XIX em um Império Otomano em franco declínio e decomposição. Jamais nutriram muitas esperanças de retornar à sua terra de origem, que guardaram na memória com nostalgia, que cultivaram dia a dia na culinária, mas cujo idioma tipicamente deixaram para trás, num claro indício de que a esperança era a de que seus filhos integrassem a nova nação. Foi o que aconteceu, esses árabes participaram da construção do país e são vistos como parte integral dele. Sem dúvida, esse é o segundo fator que coloca o Brasil em condições de melhor entender e de se aproximar do drama palestino, percebendo a grave injustiça que exige reparação.

Porém, nenhum dos fatores acima consegue impedir a presença de narrativas enviesadas na mídia, a aceitação pública de que canais de televisão e estações de rádio veiculem sem qualquer autocrítica os mesmos mitos analisados neste livro, ou a normalidade com que nossas instituições locais e nacionais fecham os olhos ao incessante avanço da ocupação da Palestina, incluindo a construção de novas colônias, demolição de mais casas, expulsões e “expropriações”, leis racistas, prisões administrativas, tentativa de silenciamento da resistência, judaização de Jerusalém Oriental e de toda a Área C da Cisjordânia, enfim, a constante limpeza étnica e o roubo das terras e propriedades palestinas.

Portanto, ao mesmo tempo em que boa parte da opinião pública brasileira, camadas médias, populares e certas elites intelectualizadas, manifesta uma compreensão quase instintiva do sofrimento palestino, o mesmo não ocorre em relação às organizações da resistência palestina. A operação de demonização das chamadas “facções” (termo que em nossa língua remete a grupos criminosos), a apresentação do palestino como “terrorista”, a equivalência gerada entre islamismo e, mais uma vez, “terrorismo”, tudo isso se enraizou na opinião pública brasileira quase sem contestação. Ou seja, presenciamos aqui uma cisão entre “o palestino oprimido e vítima de um processo colonial” e “o combatente” que não recebe a mesma empatia, não merece o direito à resistência e se acredita que deveria abandonar as armas e aguardar que a justiça seja feita.

Dez mitos sobre Israel: um livro mais que necessário

Dez mitos sobre Israel é, assim, um livro mais que necessário. Ele demonstra não apenas que o sistema israelense é colonial e usurpador, mas também que o palestino deveria ver garantido o seu legítimo direito à resistência e à luta de libertação nacional. E, por fim, explica a responsabilidade que o “processo de paz” de Oslo tem no fomento dessa criminalização da resistência palestina.

Hoje, em 2022, com o atual governo, a política externa brasileira para a Palestina se inclina a favor do colonialismo e da usurpação das terras palestinas pelo governo israelense. Estamos passando da tradicional postura de “equidistância” e amizade tanto com Israel como com a Palestina (ocupada, dominada, sem fronteiras, autonomia ou exército nacional) para um apoio incondicional ao sionismo, que não se explica apenas pela influência evangélica crescente no meio político. Setor este que não é homogêneo, mas sim um segmento em disputa, no qual, felizmente, inexiste o sentimento de identificação do protestante e evangélico norte-americano com o colono desbravador que conquista a terra dos nativos, pelas próprias mãos.

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Ou seja, se há hoje no Brasil uma multiplicidade de conhecimentos muito maior do que havia vinte anos atrás e uma vontade crescente por parte da população de se informar, há também uma disputa que se reproduz dia a dia, em cada noticiário, cada sala de aula, cada culto, cada sessão plenária da câmara de deputados. Acredito que o público brasileiro irá absorver este livro com a sede que o momento incita e que este volume irá contribuir para que o processo de rápida conscientização que ocorre no Brasil seja feito em condições mais bem informadas e disponha de maiores recursos, elevando assim o nível do debate público.

Em suma, com este livro, Ilan Pappe nos entrega um arsenal de conhecimento, de extrema qualidade, que colabora para o esforço de desconstrução das falsificações que fornecem sustentação à opressão israelense do povo palestino, servindo assim a todos aqueles que de alguma forma se inserem no debate sobre a questão israelo-palestina.

Arlene Clemesha

Arlene Elizabeth Clemesha é historiadora brasileira, professora de História Árabe do Departamento de Letras Orientais da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo e atual diretora do Centro de Estudos Árabes da USP.

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