Traduzir para crianças é desafiador. A tradução para o público adulto pode lançar mão de uma série de recursos como notas de rodapé, tabelas, glossários ou notas explicativas. Prefácios ou textos introdutórios são um espaço no qual podem ser discutidas questões relacionadas à obra, dificuldades encontradas e escolhas assumidas. Em alguns casos, certos estrangeirismos ou termos específicos podem até ser mantidos sem explicação, pois a pessoa leitora pode fazer uma pesquisa caso tenha interesse em se aprofundar no assunto.

Com o público infantil é diferente. Não é possível esperar que a criança pare a leitura para tirar suas dúvidas e a retome em seguida. E é pouco provável que notas de rodapé ou prefácios funcionem. A tradução precisa falar por si só, da primeira à última página, de forma que seu público entenda. Se o texto for muito difícil, quem lê (ou ouve) a história pode perder o interesse. Por outro lado, o mesmo pode ocorrer caso o texto seja facilitado demais. Encontrar esse equilíbrio foi uma das minhas principais preocupações ao traduzir os livros “Yunis” e “Uma história inventada do começo ao fim” do árabe para o português, procurando uma linguagem que não fosse “adulta” demais, porém sem duvidar da capacidade de compreensão do público infantil.

Em seu livro sobre tradução para crianças, Riitta Oittinen (1) lembra que editoras, autoras e autores, tradutoras e tradutores têm em mente uma determinada imagem do público leitor ao escrever e publicar textos infantis. No entanto, não existe um consenso sobre as definições de criança, infância e literatura infantil, o que dificulta o trabalho de encontrar uma linguagem adequada para o texto. 

Além disso, a autora aponta que essas obras eventualmente têm um público duplo (crianças e adultos), podendo ser lidas em diferentes níveis. Entre as particularidades dessa literatura, Oittinen destaca ainda as ilustrações, que são parte da história e às vezes chegam a ser mais importantes que as palavras, e a leitura em voz alta, um hábito que perdemos na vida adulta.

Pensando nessas características, como parte do processo de tradução dos dois livros, a primeira etapa do trabalho consistiu em olhar todas as páginas e “ler” as ilustrações e o que elas “dizem”. Na revisão, tive o apoio de algumas pessoas queridas que me ouviram contando as histórias traduzidas em voz alta.

No caso de “Yunis”, além das observações acima, a tradução exigiu um cuidado a mais. A personagem principal é um menino com Síndrome de Down, um assunto delicado, principalmente considerando um livro para crianças. Procurei tratar a questão com o mesmo respeito que a própria autora, Amal Naser, confere ao tema ao descrever com riqueza de detalhes (e sabores) o universo do menino, retratado desde as primeiras linhas como um sonhador. 

Os trechos mais gostosos de traduzir certamente foram aqueles em que Yunis prepara uma infinidade de doces cheios de cores, cremes e chocolate na cozinha, que é repleta de cheiros como leite fervido e baunilha. Foi uma delícia ler e traduzir essas páginas! Para além das aventuras da personagem, o livro aborda com muita delicadeza a Síndrome de Down e a convivência com a diferença, o que busquei transmitir no texto em português.

O segundo livro, “Uma história inventada do começo ao fim”, da palestina Sonia Nimer, é inspirado em contos populares do seu país de origem. A obra traz uma mulher que conta histórias para um príncipe. Essa técnica de inserir histórias contadas dentro da narrativa principal é um recurso recorrente na literatura árabe. Diferentemente das Mil e Uma Noites, nas quais Sherazade conta histórias todas as noites ao rei Shariar para salvar sua própria vida e a das outras mulheres do reino, o que está em jogo nesse livro é o casamento do príncipe, que gostaria de escolher para sua noiva não a mais bonita ou mais rica, mas sim aquela que se destacar por sua inteligência, o que é o mote para as histórias fantásticas que vão se revelando ao longo das páginas. 

Esse foi um projeto totalmente diferente de tradução e com suas próprias dificuldades. O livro é escrito em versos que não seguem um padrão métrico fixo, mas com rimas no fim dos versos, o que julguei que seria importante manter na tradução.

De acordo com Paulo Henriques Britto (2), na tradução de poesia, todas as características do poema – como a divisão em estrofes, as rimas, as assonâncias, as aliterações, entre outras – podem, em princípio, ser de importância crucial. Cabe à tradução decidir quais desses elementos são os mais relevantes.

A tradução de poesia para crianças carrega suas próprias especificidades. Como aponta Telma Franco Diniz Abud (3) em sua tese de Doutorado sobre tradução de poesia infantil, é necessário “chegar ao coração das crianças”, objetivo alcançado com maestria por Cecília Meireles em poemas como os que integram o livro “Ou isto ou aquilo”, que passou a fazer parte do repertório da literatura infantil brasileira desde sua publicação em 1964.

O grande desafio, no livro de Sonia Nimer, foi traduzir a poesia árabe para crianças brasileiras. Às vezes uma palavra em português parecia uma tradução adequada e rimava perfeitamente no verso, mas seria muito complexa. Por outro lado, se optasse por uma série de rimas “fáceis” (como a repetição de verbos com a mesma terminação, por exemplo), poderia deixar a leitura monótona e diminuir o encanto que existe no texto em árabe.

Foi uma alegria traduzir tanto “Yunis” quanto “Uma história inventada do começo ao fim”, que contribuem para apresentar um pouco da cultura árabe para o público infantil brasileiro. E tenho certeza de que as crianças vão aprender e se divertir muito com os dois livros.


Notas:

(1) Translating for Children (Traduzindo para crianças). Nova Iorque: Garland Publishing, 2000.

(2) A tradução literária. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012. 

(3) Tradução de poesia infantil e sua recepção via Pensar Alto em Grupo: “As meninas” e “O menino (azul)”, de Cecília Meireles. 2018. Tese (Doutorado em Estudos da Tradução), Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018. Disponível em: https://teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8160/tde-07022019-153420/pt-br.php .

Maria Carolina Gonçalves

Maria Carolina Gonçalves é tradutora e intérprete do par linguístico árabe-português. É doutoranda e mestra pelo Programa Letras Estrangeiras e Tradução (LETRA) da Universidade de São Paulo (USP) e bacharela em Letras com habilitação em Árabe e em Jornalismo, também pela USP. Residiu no Egito entre 2018 e 2019, onde estudou árabe padrão moderno e árabe dialetal egípcio no Instituto Francês do Cairo, e esteve também na Palestina, em 2016, em viagem de estudos. Atualmente, realiza pesquisa voltada à literatura árabe moderna de autoria feminina. Atua também com o ensino de árabe e português.

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