(*) Texto publicado originalmente em 3/11/2009 no jornal Al-Quds Al-Arabi.
Chovia. Andávamos sob as abóbadas recém-construídas, em ruas retas e paralelas, de chão coberto por basalto. Estávamos nos velhos mercados (sûqs) de Beirute, à procura de nossa memória, quando nos vimos caminhando sobre a própria memória. Perguntei ao meu amigo arquiteto que me guiava no meio dos três mercados – que mantiveram seus nomes –, a respeito da memória: “Como se pode pisar a própria memória?”. Sorrindo, ele disse que a memória é o calçado da arquitetura.
Não entendi o que ele quis dizer, mas sorri enquanto acompanhava a história dos sûqs, cujos nomes foram preservados: Sûq-Attawile, Sûq-Jamil e Sûq-Ayias.
Me senti como se estivesse em um centro comercial, um grande e enorme shopping de várias entradas. Todos os marcos do passado desapareceram, o Khan Anton Bek foi derrubado e no lugar seria erguido um supermercado projetado por Zaha Hadid. Os antigos sûqs sumiram. Não teríamos mais alfaiates no Sûq- Ayias, deixaria de existir o Sûq dos Ourives e tampouco haveria espaço para o Sûq-Alfranj. Apenas o prédio do jornal L’Orient permaneceu de pé, necessitando restauração. A antiga Fonte do Antabli foi substituída por uma outra pequena de mármore. Nenhum rastro do restaurante Alajami, e o cheiro de Beirute desapareceu.
Perguntei ao meu amigo sobre a relação da arquitetura com o cheiro e lhe disse que, ao caminharmos por ali, não estávamos apenas pisando a nossa memória, mas também o cheiro dos lugares. A memória pode ser um calçado, como escrevem os poetas, mas é o calçado do cheiro.
A história dos sûqs na região de Bab-Idris se assemelha a toda a história antiga de Beirute. O Centro Velho foi destruído, no curso do projeto de reconstrução que ficou a cargo da companhia Solidere (1). A Beirute otomana que ficava nas proximidades da Praça dos Mártires foi totalmente demolida e jogada no mar. Apenas a área de Sahet–Annejme foi restaurada. Essa praça de arquitetura colonial francesa, que passou a se chamar agora “downtown”, ou Solidere, ficou lotada de restaurantes e passou a ser o destino certo de turistas do Golfo.
Os outros sûqs, também de estilo otomano, localizados dentro do antigo muro, foram igualmente demolidos para serem reconstruídos como sûqs. Contudo, em vez de cada sûq ser entregue a um arquiteto diferente, como previa o plano diretor inicial – elaborado pelo engenheiro Jad Tabit –, a fim de manter a diversidade na unidade, conforme o projeto de reavivar a alma dos antigos sûqs e preservar seu cheiro, a construtora preferiu entregar tudo ao mesmo designer. Assim, o arquiteto espanhol Rafael Muño elaborou um único projeto, homogêneo a ponto de eliminar singularidades, dando lugar a esse grande mercado coberto, mais parecido com um grande e moderno shopping americano.
Por que não? Disse a meu amigo arquiteto.
Meu amigo, cujos pequenos olhos brilhantes foram ofuscados por tamanha tristeza, não era um mero arquiteto. Havia sido ele quem elaborara o plano diretor para reerguer os sûqs.
Tínhamos acabado de sair derrotados de uma batalha cultural liderada por arquitetos e intelectuais, encabeçados por Jad Tabit e Assem Salam, e ainda sentíamos o amargo gosto da derrota. Solidere triunfou sobre toda a cultura libanesa, que ainda resistia a fim de restaurar o tecido padronizado de Beirute. Em 1994, meu amigo concordou em elaborar o projeto, na tentativa de salvar o que pudesse ser salvo.
Caminhávamos em meio a essa tentativa de resgate, mas nos vimos em uma cidade nova. Boutiques de grifes internacionais, sem vestígios das pequenas lojas – ou o que chamavam de bazares –, um mundo pós-moderno que fazia a gente se sentir em lugar nenhum. Eu disse a ele que esta é a lógica do capitalismo rentista, é de estar em lugar nenhum.
Meu amigo deu um sorriso amargo quando me contou sobre o remanescente do muro otomano abobadado descoberto na área. Ele disse que o projeto previa sua manutenção e a transformação de sua área em um parque arqueológico público. Mas a lógica da construtora, que não queria que os sûqs se transformassem em um ponto de encontro de andarilhos, demoliu o muro preservando alguns metros cercados dele – o que não fazia sentido algum –, com a finalidade de alegar a preservação do patrimônio!
Mas esses mercados não são feios? Perguntei.
Chovia. Caminhávamos embaixo de um pequeno guarda-chuva no Sûq-Ayias, o único deixado sem cobertura. Meu amigo então disse: “Antigamente, este era o único sûq sem telhado. Não sei por que cobriram o Sûq-Attawile e o Sûq-Jamil, deixando este sem cobertura”. É estranho, de qualquer forma, nomes não fazem mais sentido aqui, agora tudo virou um complexo comercial, sem distinção, e vai ser chamado de Solidere 2, e nada mais.
O pequeno guarda-chuva não foi capaz de nos proteger da chuva, olhei para o meu amigo e vi a água brilhar em sua calvície. Disse a ele que deveria começar a usar chapéu, e lhe contei sobre meu tio que era dono de uma loja no Sûq-Jamil, o qual morreu de desgosto por acabarem com os sûqs, e de como ele se recusou a tirar seu tarbuch otomano, mesmo quando estava no hospital, agonizando.
Paramos em uma travessa coberta. Meu amigo seguiu me contando sobre o Sûq dos alfaiates, onde seu tio lhe fez o terno de casamento, sobre o escritório que herdou do pai naquela mesma área, e sobre o sahlab (2) quente, que acostumava tomar às duas horas da madrugada, quando precisava ficar acordado para terminar um projeto.
Será o que os sûqs voltarão a ter sahlab? Perguntei.
Pegamos o carro de volta para casa, mas antes, no caminho, paramos no Chase Café – em Achrafieh –, o qual ainda oferecia a guloseima quente. Por traz do vapor de leite misturado com misque, eu disse ao meu amigo que nosso problema era tentarmos remediar nossa derrota política com cultura. Como patriotas, democratas e secularistas, saímos da guerra, levando a colheita da derrota, mas pensamos que poderíamos prosseguir nossa luta no âmbito cultural e que possivelmente ganharíamos.
Mas a batalha pela reconstrução nos trouxe de volta à verdade nua e crua. Beirute foi reconstruída para se assemelhar aos seus empreiteiros, os donos do capital rentista, e nossa cidade desapareceu sob o pretexto de se apagar as marcas da guerra, a qual lutamos para preservar o espírito da cidade.
“Esta não é nossa cidade”, meu amigo disse.
“Mas o sahlab tem um aroma bom”, retruquei.
“Só nos sobrou a memória do sahlab”, triste, comentou.
Tradução do árabe: Safa Jubran
Notas:
(1) Sociedade comercial nacional responsável pelo planejamento e desenvolvimento do Distrito Central de Beirute, após o fim da Guerra Civil Libanesa em 1990.
(2) Espécie de farinha obtida dos tubérculos de várias espécies de orquídeas endêmicas das montanhas do sudeste da Turquia, que preparada com leite e especiarias resulta numa bebida espessa de sabor único.
Elias Khoury
Elias Khoury é um romancista e intelectual libanês, nascido em Beirute, em 1948. Khoury também foi editor de jornais libaneses famosos e ensinou em importantes universidades nos EUA, bem como em países árabes e europeus. Sua obra literária já foi traduzida para mais de 15 línguas.