Edward Said e a condição do exílio

A filósofa Olgária Matos, no prefácio do livro O Estranho e o Estrangeiro: ensaios sobre a contemporaneidade abre o texto com a sentença: 

O Mundo contemporâneo é o do exílio e não o da pátria, o da errância e não o do lugar. Razão pela qual o nosso tempo foi denominado o “século breve”, em que os acontecimentos e os desaparecimentos de modos de vida e valores são acelerados, não permitindo o repouso que permite a constituição de uma memória reparadora.

Conclui-se, a partir disso, que vivemos a “era dos deslocamentos’’ e, com isso, a consolidação da vida fraturada, sem possibilidade de reparação. 

Um dos temas recorrentes na obra do pensador, professor de Literatura Comparada e ativista da Causa Palestina, Edward Said, é o exílio. É possível afirmar que Said explorou, senão todas, grande parte das possibilidades desse “objeto multifacetado”.

Nos dois primeiros parágrafos do ensaio “Reflexões sobre o Exílio”, de 1984, Edward Said opera uma fórmula — ou pelo menos resvala — emprestada da música, que habita grande parte de seus textos: o contraponto (uma ferramenta quase poética para abordar a complexidade do exílio).

O exílio nos compele estranhamente a pensar sobre ele, mas é terrível de experienciar. Ele é uma fratura incurável entre um ser humano e um lugar natal, entre o eu e seu verdadeiro lar: sua tristeza essencial jamais pode ser superada. E, embora seja verdade que a literatura e a história contêm episódios heróicos, românticos, gloriosos e até triunfais da vida de um exilado, eles não são mais do que esforços para superar a dor mutiladora da separação. (…)

Mas, se o verdadeiro exílio é uma condição de perda terminal, por que foi tão facilmente transformado num tema vigoroso — enriquecedor, inclusive — da cultura moderna?

A questão elaborada do segundo parágrafo não anula as sentenças do primeiro. Antes, complementa, acrescenta e amplia o campo harmônico, sem com isso minimizar sua forma “terrível de experienciar”. Experiência que ele mesmo viveu com sua família, em 1947, e outros mais de 700.000 palestinos que foram obrigados a deixar a Palestina em 1948 com a implantação do Estado de Israel.

Há diferentes estados de exílio: o exílio do desterro, portanto, forçado; o exílio autoinfligido, de alguma forma, por coação, posto que se trata também de uma fuga contra a possível violência estatal, grupal ou individual; o exílio do deslocamento da clausura (a prisão não seria ela mesma uma forma de exílio?); o exílio existencial, daquele que não se adequa a normas do senso comum. Em um exame rápido, não há equivalência nesses diferentes estados de exílio. Mesmo assim, há um ponto em que todas essas formas tangenciam: a dor.

No século XVIII, Giambattista Vico dizia “se sentir um estrangeiro em sua própria pátria”, um desterrado numa época marcada pelo racionalismo abstrato. Até hoje pensadores das mais diversas escolas refletem sobre o exílio, buscando dar algum sentido a seus efeitos nefastos. Mas nunca como a partir do século XX, e sua intensificação no século XXI. Importante diagnóstico dos resultados catastróficos desse mundo em colapso foi elaborado por Walter Benjamin em vários de seus escritos, desde o ensaio “O Narrador” até em suas teses Sobre o Conceito de História. Alguém há de negar o brilhante insight de Benjamin em “O Narrador”, quando o filósofo alemão aponta para o silêncio dos combatentes ao retornar da Guerra, que impôs a eles a impossibilidade de narrar? Ainda assim, por que o exílio pode se transformar “num tema vigoroso — enriquecedor, inclusive — da cultura moderna?”

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Said transforma a condição do exílio em conceito, assim como Theodor Adorno, em Minima Moralia: reflexões a partir da vida lesada. Não é acidental a proximidade entre eles, tanto na experiência vivida quanto na forma como tratam de questões aparentemente antagônicas. Nenhum dos dois se furtou a enfrentar os paradoxos do mundo do pós-guerra e da Guerra-fria. Ambos migraram para o lugar que lhes negara um lugar. 

A proximidade de ideias entre Edward Said e Adorno não é acidental nem fortuita. Assim como não há ironia na afirmação que Said faz em entrevista a Avi Shavit, em agosto de 2000: 

Eu sou o último intelectual judeu. Você não conhece mais nenhum outro. Todos os outros intelectuais judeus são agora escudeiros suburbanos. De Amos Oz a todas essas pessoas aqui na América. Então, eu sou o último. O único seguidor verdadeiro de Adorno.

Para os dois pensadores, o exílio produz feridas que não cicatrizam, provoca fraturas que fragmentam vidas, cuja única alternativa é direcionar o olhar sobre a experiência do lar perdido, sempre remoto; no caso de Adorno, um lugar que nunca mais poderá ser retomado. Aqui talvez encontremos as linhas paralelas que dialogam mas percorrem trajetos distintos. Se para Adorno as circunstâncias apontam para um mundo caótico e sem redenção, para Said a insistência dos palestinos em continuarem resistindo ao apagamento é, ela mesma,  criação de sentido. Uma coisa é certa: a memória ocupa o espaço da escrita.

A leitura da obra de Edward Said conduz a uma espécie de investigação em busca de pistas que possam elucidar mistérios por trás do que se apresenta em primeiro plano. Para tanto, é preciso encarar o exílio nas seus mais diversos modos de experiencia-lo. As raízes deste elaborado pensamento estão em suas referências principais. Adorno é uma delas. Assim como Giambattista Vico, filósofo napolitano oitocentista, autor da Ciência Nova, um texto no qual Said mergulhou para nele descobrir a linguagem poética e a historicidade. Said redescobre em Vico um autor que, por sua precária condição, experimentou uma forma de exílio; assim como repensa Auerbach, um pensador seminal, também exilado da Alemanha nazista, em 1936, autor de Mímesis: a representação da realidade na Literatura Ocidental; Antonio Gramsci, preso pela polícia fascista em 1926, autor de Cadernos do Cárcere; finalmente, Joseph Conrad, escritor de origem polonesa, que migra para o Império Britânico quando adolescente, autor de Coração das Trevas. Todos eles… exilados. Seja na forma do desterro ou do exílio existencial, vivenciaram seus efeitos. Seja qual for o tipo de exílio, uma coisa é certa: produz uma vida fraturada.

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