Em ano de eleição no Brasil de 2022, análises em torno do apoio evangélico a Bolsonaro e do uso da bandeira e de outros símbolos de Israel por parte desse grupo devem ser retomadas com mais ênfase. O que à primeira vista parece ser uma contradição vem, na verdade, de séculos atrás, no mínimo desde o século XVI, como aponta o historiador israelense Ilan Pappe em Dez mitos sobre Israel, que a Tabla acaba de lançar com tradução de Bruno Cobalchini Mattos. Ao mesmo tempo, Pappe afirma que o sionismo, antes de ser judeu, era um projeto de colonização cristão, bastante calcado no antissemitismo. Aqui vale uma citação longa do livro:
“O tema comum dessa abordagem crítica é melhor resumido em ‘A invenção do povo judeu’, de Shlomo Sand. Sand mostra que, em dado momento da história moderna, o mundo cristão, agindo por interesse próprio, apoiou a ideia de que os judeus seriam uma nação que devia retornar um dia à Terra Santa. Segundo esse raciocínio, tal retorno faria parte do esquema divino para o fim dos tempos, assim como a ressurreição dos mortos e a Segunda Vinda do Messias.
As reviravoltas teológicas e religiosas causadas pela Reforma a partir do século XVI geraram uma associação clara, sobretudo para os protestantes, entre a ideia de fim do milênio, a conversão dos judeus e seu retorno à Palestina.
Thomas Brightman, clérigo inglês do século XVI, representou esses preceitos ao escrever: ‘Devem eles retornar a Jerusalém outra vez? Não há certeza maior: os profetas de todos os cantos confirmam e falam sobre isso’. Brightman não só esperava que a promessa divina fosse cumprida, mas também, como tantos depois dele, desejava que os judeus se convertessem ao cristianismo ou deixassem todos a Europa.
Cem anos mais tarde, Henry Oldenburg, filósofo da natureza e teólogo alemão, escreveu: ‘Se a ocasião se apresentar em meio às mudanças às quais estão sujeitas as ações humanas, [os judeus] podem até reerguer seu império, e […] Deus pode escolhê-los uma segunda vez’. Charles-Joseph de Lign, general-marechal de campo austro-húngaro, observou na segunda metade do século XVIII:
‘Acredito que o judeu não é capaz de assimilar, e que constituirá constantemente uma nação dentro de uma nação, onde quer que esteja. A coisa mais simples a se fazer, em minha opinião, seria devolvê-los à sua pátria, de onde foram afugentados’.
Como fica bastante claro neste último texto, havia uma ligação óbvia entre essas ideias constitutivas do sionismo e um antissemitismo mais longevo. (…)
O sionismo, como podemos ver, foi, portanto, um projeto cristão de colonização antes de se tornar judeu.”
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Essa forma de pensar se mostra cada vez mais forte entre grupos de evangélicos estadunidenses e brasileiros. Eles acreditam que a promessa feita por Deus na Bíblia de que a Terra Santa pertence aos judeus é literal e eterna. Esses grupos são adeptos do “dispensacionalismo”, uma doutrina teológica que afirma que a segunda vinda de Jesus Cristo será um acontecimento no mundo físico, e para isso acontecer, é preciso que os judeus retornem à Terra Santa. A criação do Estado de Israel seria uma etapa necessária para que esse acontecimento religioso ocorresse. Dentro desse raciocínio, os judeus se converteriam ao cristianismo e aceitariam Jesus Cristo como o Messias.
Argentina ou Palestina
A ideia de criar um Estado judeu foi consolidada com Theodor Herzl (1860-1904), jornalista e autor do panfleto “O Estado judeu”, ao lado de lideranças judaicas que pensavam como ele. Segundo Pappe, foi uma reação a uma onda de perseguição contra judeus na Rússia, entre fins dos anos 1870 e início dos 1880, e ao crescimento do nacionalismo antissemita na Europa.
Em “O Estado judaico”, Herzl traz duas possíveis propostas para a criação de uma nação judaica: a cessão de terras na Argentina ou na Palestina:
“Dois países devem ser levados em consideração: Palestina e Argentina. Em ambos os países foram feitos notáveis tentativas de colonização, baseadas no princípio equivocado da infiltração paulatina dos judeus. (…)
PALESTINA OU ARGENTINA? A qual das duas deve-se dar preferência? (…)
A Argentina é, por natureza, um dos países mais ricos da Terra, de imensa superfície, população escassa e clima temperado. A República Argentina teria o maior interesse em ceder-nos uma porção de terra. A atual infiltração dos judeus provocou descontentamento: seria necessário explicar à Argentina a diferença radical entre aquela e a nova imigração judaica.
A Palestina é a nossa pátria histórica inolvidável. O simples ouvir citar o seu nome é um chamado poderosamente comovedor para nosso povo. Se Sua Majestade, o Sultão [otomano], nos desse a Palestina, nós nos comprometeríamos a sanear as finanças da Turquia. Para a Europa, formaríamos ali parte integrante do baluarte contra a Ásia: constituiríamos a vanguarda da cultura na sua luta contra a barbárie. Como Estado neutro, manteríamos relações com toda a Europa que, por sua vez, teria de garantir nossa existência. Quanto aos Lugares Santos da cristandade, poder-se-ia encontrar uma forma de extraterritorialidade, de acordo com o direito internacional. Montaríamos uma guarda de honra ao redor dos Lugares Santos, respondendo com nossa existência ao cumprimento deste dever. Tal guarda de honra seria o grande símbolo da solução do problema judaico, depois de dezoito séculos de sofrimento para nós.”
Outros locais como Uganda, Madagascar e Quênia foram aventados para a criação de um Estado judaico, mas a colonização do território da Palestina foi, ao final, o que se concretizou, expulsando os palestinos das suas terras. Essa população se transformou em uma das maiores populações de refugiados do mundo, sem direito de retornar.
Outras Terras Prometidas
Podemos ver o mito da Terra Prometida aparecendo em outros contextos. Historicamente, quando os europeus encontraram o continente americano em fins do século XV, muitos acreditaram se tratar do Paraíso Perdido bíblico e perpetuaram atrocidades nesses territórios.
Os guaranis possuem o mito da Terra sem Males, uma narrativa mítica dos deslocamentos e migrações desses povos de idas ao leste. Hélène Clastres define que “a Terra sem mal é esse lugar privilegiado, indestrutível, em que a terra produz por si mesma os seus frutos e não há morte”. No geral, a história segue o seguinte mote, conforme Filipe Novaes Pinto:
“Um determinado demiurgo – geralmente Nhanderu Papa Tenonde – criou uma sucessão de terras que, impróprias ou imperfeitas, foram sendo substituídas, umas pela outra, a partir de cataclismos como fogo e grandes inundações. Em um dos desdobramentos do mito, o demiurgo se recolhe juntamente com outras divindades criadas por ele em sua morada celeste, que ficaria a leste, além dos mares, em direção ao sol. Tal morada celeste é a terra prometida, a Terra sem mal (yvy-marãey), onde o alimento e todas as coisas são inesgotáveis, onde não há tabus matrimoniais, não há necessidade de trabalhar, todos são imortais e eternos. Os caraíbas, grandes profetas, mobilizam milhares de Guarani, afirmando serem conhecedores das “belas palavras” – os cantos e ritos orais dos xamãs Guarani – e do caminho certo para a morada celeste, acessível em vida. Escapar-se-ia, assim, da terra atual, a terra má, que é yvymba’ emegua, a terra imperfeita fadada à destruição”.
O próprio Pero Vaz de Caminha escreveu na famosa carta após o desembarque dos portugueses, em 1500, que “nesta terra, em se plantando, tudo dá!”.
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O continente africano também habitou o imaginário de negros libertos e escravizados nos Estados Unidos, assim como de abolicionistas brancos anglo-saxões. A fundação de Serra Leoa, na costa oeste da África, assim como a Libéria foi uma forma levar de volta ao continente os ex-escravizados e seus descendentes
No entanto, muitos negros livres e libertos nos Estados Unidos eram contra essa ideologia de retorno à África por ser uma forma de negar a cidadania aos negros no país e a sua integração na sociedade estadunidense.
Essa ideia de separação também ecoa o tratamento dado aos palestinos pelo Estado israelense, que, como Ilan Pappe mostra em Dez mitos sobre Israel, nunca considerou dividir o território com os palestinos, que já estavam lá há muitos séculos.
Paula Carvalho
Paula Carvalho é jornalista, doutora em História pela UFF e autora do livro “Direito à Vagabundagem: As viagens de Isabelle Eberhardt”