A poesia persa clássica é um corpus absolutamente imenso, fonte inestimável de temáticas, imagens e poéticas, ainda muito pouco exploradas e difundidas no Brasil. Este breve texto busca fazer uma breve introdução ao tema e apresentar traduções diretas de poemas de quem é considerado por muitos como o maior expoente da poesia lírica persa: Hafiz de Chiraz.
Um dos grandes marcos culturais e linguísticos na história do Irã é o Shahnameh (completado em 1010), um poema épico que relata os mitos fundadores do país, sendo a primeira grande obra escrita em persa moderno. Desde então, a poesia assumiu um papel central dentro do Irã e outros países falantes de persa (como o Tajiquistão, o Uzbequistão e o Afeganistão). Muitos governantes abrigavam poetas em suas cortes, financiando-os. Os panegíricos que esses poetas escreviam, denominados qasida, deram origem ao gazal, que tem natureza mais amorosa e erótica. O robāʿi, caracterizado por seu caráter epigramático e filosófico, é outra forma de imensa importância. Esta tradição foi se desenvolvendo, acumulando temas, imagens e metros, até se tornar uma grande e rica tapeçaria – para utilizar uma metáfora empregada pelos próprios prosodistas persas.
Essa tradição exerceu influência sobre alguns polissistemas literários europeus, entre os quais pode-se destacar os de língua alemã, devido principalmente a Goethe e seu West-östlicher Divan, obra inspirada por uma tradução do divã de Hafiz realizada por Joseph von Hammer-Purgstall, um orientalista austríaco. É impossível não mencionar a tradução de robāʿiāt de Omar Caiam por Edward FitzGerald, que trouxe a poesia persa para uma posição de importância dentro de vários polissistemas literários europeus. No entanto, o texto final produzido por FitzGerald possui consideráveis interferências de caráter orientalista, de modo que seu legado não é de todo positivo. A tradução de FitzGerald acabou por dominar as percepções acerca da poesia persa no Ocidente, transformando-a em algo mais simplificado, com menos nuances e profundidade.
Shams al-Din Muhammad Hafez-e Shirazi, ou Hafiz, viveu em Chiraz, cidade do então reino de Fars, durante o século XIV. Foi uma cidade que permaneceu ilesa durante as destruições provocadas pelas invasões mongóis do século XIII, e que floresceu bastante durante este período: se destacava pela grande presença de tumbas de santos, pelas suas inúmeras escolas, pelos seus jardins e pelos seus poetas. Já no século XIV, tinha a alcunha de dar al-’elm, ou casa do conhecimento. No entanto, a cidade não passou incólume pelas tribulações causadas pelo fim do ilcanato, com uma série de intrigas palacianas, golpes e guerras que fizeram com que a cidade mudasse de mão inúmeras vezes durante a vida de Hafiz.
Em termos poéticos, Hafiz é herdeiro do legado de Sa’di (também habitante de Shiraz), poeta da geração anterior responsável por cristalizar o gazal em uma forma dotada de convenções, temáticas e estruturas próprias. Para muitos, Hafiz é o ápice da arte de escrita do gazal. Seus poemas são repletos de imagens inesperadas e de aforismos extremamente contundentes, esticando o formato amoroso do gazal em novas direções. Do universo de sua poética, pode-se destacar dois elementos importantes.
Primeiramente, a sua sobreposição de significados profanos com significados espirituais – ao contrário de outros poetas que escreviam poemas com cunho abertamente sufi, como Attar e Rumi, Hafiz é um tanto quanto mais ambíguo: ora místico, ora libertino. Muitas vezes, um verso posterior de um poema nos faz reinterpretar os significados de versos anteriores. Não há como negar a presença de versos e significados espirituais na poesia de Hafiz, mas também é preciso dizer que sua filosofia não se encaixa completamente em qualquer vertente sufi de sua época, sendo algo sui generis.
Em segundo lugar, há que se destacar a sua virulenta crítica e condenação a qualquer tipo de hipocrisia por parte de autoridades e figuras religiosas e espirituais. Pregadores, xeiques, sufis: ninguém escapa ileso de sua pena. É importante ressaltar que, em sua época, o sufismo já se tornara bastante popular entre as elites e era muitas vezes uma forma de se adquirir poder e autoridade secular. Em seus poemas, Hafiz repetidamente rejeita os conselhos e ditames dos pregadores em favor do “velho mago”, uma figura enigmática que permeia vários de seus poemas.
A poética Hafiziana é um universo imenso, cheio de nuances e paradoxos – a melhor forma de conhecê-lo, no final das contas, é lendo seus poemas. Seguem abaixo, então, quadras e gazais de Hafiz, em tradução direta do persa. As traduções empregam alguns dos metros utilizados pela lírica galego-portuguesa dos trovadores, entre elas decassílabo e o hendecassílabo de arte maior (o decassílabo de arte maior é denominado também de gaita galega), assim como o octossílabo e redondilha maior em versos compostos.
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Ei, amigo, esconde o teu ser do inimigo
beba bom vinho com rostos mui lindossolte a gola com quem sabe da arte
com os néscios, ata bem o teu cinto.
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A lua não se igualava à sua figura
tirou a roupa – a pinta negra, a pele nua
peito tão tenro que eu via seu coração
qual água clara que lava pedra crua
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Ontem fui ter com um sábio, e o que ele disse, reproduzo:
os segredos do taberneiro não te serão mais ocultosdisse: sê leve em tua vida! Advém da natureza
do próprio mundo ser duro com quem consigo é duroentão me passou uma copa de tamanha radiância
que Vênus se pôs a dançar e o jogral bradou: saúde!a este peito tão sofrido, traze o sorriso da taça!
não chores ao menor toque, como faz o alaúdeaté seres iniciado, não penetrarás o véu –
o verbo de Sorush não cabe no ouvido dos incultosafirmo: no templo do amor, não tem ingresso a bazófia –
mas sim olhos e ouvidos sempre em escuta e em buscaquando na reunião dos sábios, põe de lado a presunção –
sê sensato! Fala o que sabes, ou cala-te em absoluto!traz o vinho, pois, copeiro! A devassidão de Hafiz
não é segredo para o asef, que minhas falhas escusa.
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Se tomar meu cor em mão o tal turco de Chiraz
por sua pinta hindu eu daria Samarcanda e até Bukhara
traz o vinho, mesmo a borra! Pois no céu não encontrarás
a ribeira de Roknabad ou o rosal da mossalá
ai, e os ciganos atrevidos que amotinam a cidade
como turcos num banquete, saquearam minha paz
nada tem o alvor do amigo com o nosso amor tão falho
pois a face bem formosa não demanda pó nem lápis
com a beleza de José, que crescia a cada dia,
aprendi que o véu de Zuleica, frente ao amor, se despirá
se falares mal de mim, me amaldiçoares – sou grato!
saiba que palavras acres adoçam teus rubros lábios
ouve meus conselhos, jovem – se desejas ser feliz
a sabença dos antigos vale mais que a própria alma
diz de vinho e bardos, sim, do enigma do cosmos, não!
a razão nunca os solveu – nem jamais os solverá.
já fiaste teu poema, Hafiz, perfurando a pérola
que os céus espalhem o colar das Plêiades em teu cantar
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Não renuncio ao vinho nem às belas figuras
já fiz cem contrições e não farei mais juraso jardim do paraíso, as huris e os palácios
não se igualam nem ao pó da sua ruaos ditames dos sábios não passam de alusões
já falei em metáforas – não repito a figura.jamais conhecerei minha própria cabeça
até que na taverna erga-a em buscaum xeque me zombou: Vinho é haram! Chega!
retruquei: Sim, é claro! Mas não escuto mulas!ao menos não sou ímpio a ponto de flertar
com jovens beldades lá do alto da tribunaa corte do mago é a casa da fortuna,
Hafiz, por isso beijo o pó da sua rua.
***
As rosas rubras florescem, o rouxinol se embebeda
ouvi clamar a ebriez, sufis de presença vera!
alicerce da contrição parecia rocha firme:
foi quebrado pelo cristal de uma taça fina e terna
traz o vinho! Nesta corte do contento não importa
se és abstêmio ou beberrão, do palácio ou da caserna
deste albergue de duas portas, um dia hás de partir –
que diferença faz, se tua guarida é rica ou austera?
não se tem a vida fácil, sem antes se ter a dor –
com a firmação do pacto, afirmou-se esta tragédia
não te aflijas com o ser e o não ser! Sê feliz!
pois não ser é o fim de até a mais perfeita matéria
a linguagem dos pássaros, o nobre Asef, o corcel-vento:
– tudo isso o vento levou – e a Salomão, nada resta!
Ao ganhares asa e pluma, não voes longe do caminho
mesmo a flecha bem lançada não tarda em voltar à terra
que gratidão mostrará o teu cálamo, Hafiz,
aos que dão de mão-em-mão os aforismos que versas?
***
Fala de nossa união que da alma minha – me levanto
sou ave celeste, da terra e seus ardis – me levantopor teu amor, posso jurar: se me chamares de teu escravo
té do trono da criação, meu amigo – me levantofaz chover tua nuvem-guia, ó senhor, sobre o meu ser
que, tal o pó que é soprado pela brisa – me levantocom vinho e um bom jogral senta ao pé da minha tumba –
dançando, com teu perfume como guia, – me levantolevanta e mostra teu talho, belo de doce dançar
que, batendo as palmas, dessa terra e vida – me levantoainda que eu seja velho, me abraça forte em teu seio
que na aurora de amanhã, redivivo – me levantoquando eu morrer, dá-me o mero vislumbre do teu rosto
que, como Hafiz, dessa terra e vida – me levanto.
Assista a aula sobre poesia persa ministrada por Nicolas Voss no canal da Tabla:
Nicolas Voss
Nicolas Voss é Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem da PUC-Rio, onde estuda e traduz a poesia persa clássica de Hafiz de Xiraz e Jahan-Malek Khatun, com ênfase na produção de soluções formais com alta correspondência ao texto original.