(*) Texto endereçado ao neto do escritor.

A tinta das palavras não comporta tanto amor, como posso escrever a você, agora que a língua ficou precária e quando a minha cidade e o tempo se encolheram? Mas, com você, aprendi que o amor nunca é precário.

Vejo-o na minha frente, cercado por malas, vejo seu rostinho com uma máscara azul, pegando o avião com destino a Paris, e no bolso um passaporte com visto de imigrante.

Nunca imaginei essa cena que expressa tanto tristeza como alegria. Os opostos se encontram na sua pequena testa, que não admite comparações, pois diante da beleza, a eloquência se cala e a metáfora se quebra.

Não vou lhe dizer que você está pagando hoje pelo fracasso imposto por nossa incapacidade de cumprirmos a promessa que fizemos a vocês e a nós mesmos, você sabe disso.   

Quando a professora lhe perguntou, durante a aula no “Zoom”, se você gostava do Líbano e se você se sentia pertencente à pátria, você disse, com a inocência e a malícia das crianças, que você amava à sua família e aos seus amigos. Com isso, e sem que você se desse conta, respondeu que a pátria não é a terra, as montanhas ou os rios, mas as pessoas que amamos.

No dia 4 de agosto, quando explodimos junto com Beirute, ao enxugar as lágrimas de sua mãe antes de se permitir chorar, naquele dia, meu querido, você entendeu que este país está nos matando no isolamento individual, em meio a uma terrível morte em massa, e por isso você decidiu fazer parte de uma antiga história libanesa escrita por nossos ancestrais, que tentaram arrancar suas raízes para escapar da morte libanesa que os cercava com pobreza, fome e tirania.

Não vou lhe contar as histórias dos imigrantes, agora é sua vez de contar, e você tem a liberdade de escolher a língua que quiser, mas tenho certeza de que todas as línguas faladas pelos imigrantes foram adotadas por netos que esqueceram sua língua, mas depois descobriram que esta fazia parte de sua própria vida.

Você conhece a história do seu nome, e sabe que um amigo poeta queria que lhe déssemos o nome Amir (príncipe), por causa da beleza do Príncipe Hamlet, mas seus pais decidiram chamá-lo de Yámin, para espalhar a graça e difundir o bem-estar, e eles estavam certos. Contudo, não consigo evitar chamá-lo de Amir, no meu íntimo.

Lembro-me de você, criança de quatro anos, quando brincávamos do poema de Umru’ Alqays, você gritava: mikarrin, mifarrin, mudbirin muqbilin ma’an/ka-julmud sakhrin hattuhu assaylu min ‘ali (2). Enquanto isso, jogava até o teto suas bolas mágicas, depois montava em seu cavalo de madeira e conversava com ele como fazia o nosso Rei errante que acobertava suas perdas com rimas.

Eu falei de tristeza e de alegria, mas escrevi com letras de dor. Escrevi a tristeza, pensando na alegria. Esta mistura mágica entre os dois sentimentos é um sinal de amor. Como disse o poeta Alakhtal Alsagir (3) e como Fairuz cantou: chora e ri, não de tristeza nem de alegria/ feito um amante que escreve um verso de amor e em seguida apaga (4).

Desde seu nascimento que me transformou em avô, eu tenho colhido alegrias de seus lindos olhos, de sua risada e da vida que brilha na sua testa. Cresceu. Agora é um rapaz de doze anos, mas sua imagem brincando de Umru’ Alqays está gravada em mim com alegria e me acompanhará até o fim da vida. 

O que devo recomendar a você, quando você mesmo é o legado?

Devo recomendar que cuide de meu filho, teu pai, e da amiga do seu coração, tua mãe? Ou que fique de bem com a vida no estrangeiro? Você sabe que está partindo apenas porque nos tornamos estrangeiros em nossa terra. Ou devo pedir que não se esqueça – mesmo querendo que o fizesse – desta dor que se gruda em nossas almas e desta sensação de ser expulso de sua casa, de sua cidade e de sua pátria? 

Não, não vou recomendar nada, pois não gosto de legar nem de delegar. Eu sei que é livre e será sempre livre. Seja o que quiser ser, leve, porém, uma mensagem a todos os jovens imigrantes e exilados, diga-lhes: “vocês merecem a vida, e ela é o lugar de seu brincar”.

Por favor, querido, não odeie sua pátria, sei que em momentos de raiva e de tristeza falamos coisas que não devemos. Não diga que a Beirute que amamos não nos ama, porque ela transformou nosso amor em morte. Beirute é uma cidade violada, sequestrada por vilões que a saquearam antes mesmo que fosse detonada pela corrupção. 

Beirute está condenada a permanecer onde está, sujeita ao ódio e à profanação dos príncipes do poder e do dinheiro que alugaram suas almas, mas ela não se importa com eles, pois em suas ruas e praças, onde nosso sangue foi derramado e onde nossos jovens foram cegados pelas balas de borracha, está a história da cidade que foi e que será. 

Em Beirute, meu pequeno, o avô de seu pai viveu em meio a fome da primeira guerra mundial, e seus sete tios morreram durante o Seferberlik (5).

E nesta cidade que lançou seus filhos numa longa guerra civil, o Líbano conheceu um marco glorioso da liberdade e da resistência.

Foi aqui que Chidiaq, os Yazigi e os Bustani formularam a língua moderna dos árabes, e lá nas encruzilhadas do Cedro do Senhor, quem for capaz de ouvir, que ouça a voz da justiça e da libertação. 

Beirute foi sempre assim e continuará assim, um poema que os poetas não foram capazes de escrever, porque foi ela quem os escreveu quando o sonho da mudança nela floresceu.

O sonho não morreu. Os sonhos não morrem. Leve o sonho com você, se quiser, e sonhe como bem desejar, mas lembre-se de que eu guardei para você um tesouro nas areias desta enorme costa azul, tesouro que tem um único nome formado de duas palavras: Liberdade e Amor.

Eu não deveria envolvê-lo nesses detalhes. Só queria lhe dizer que Beirute não consegue sair de Beirute, ela permanecerá na costa leste do mediterrâneo, de braços abertos para os estrangeiros, que se parecem com você. 

Beirute espera, sem ter a preocupação e o medo de quem espera. Ela espera o amor e o amor não se cansa de esperar. 

Tradução de Safa Jubran

Notas:

(1) Texto originalmente publicado em 26 de outubro de 2020. Clique aqui.

(2) O verso mais célebre do poema pré-islâmico de Umru’ Alqays em que descreve seu cavalo: Indo e vindo, avançando e recuando, semelha uma rocha de cima arrastada pela torrente.

(3) O poeta libanês Bechara Khoury (1885-1968).

(4) Os versos podem ser ouvidos aqui.

(5) Nome dado à campanha de mobilização que envolveu tanto a convocação forçada de libaneses, sírios, palestinos e curdos para lutarem nas fileiras do exército turco-otomano na Primeira Guerra Mundial, como a deportação de suas famílias para a Anatólia. Os desertores eram executados.

Elias Khoury

Elias Khoury é um romancista e intelectual libanês, nascido em Beirute, em 1948. Khoury também foi editor de jornais libaneses famosos e ensinou em importantes universidades nos EUA, bem como em países árabes e europeus. Sua obra literária já foi traduzida para mais de 15 línguas.

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