Adentrando meu quarto ano na Palestina, sigo surpreso pelas intermináveis novidades que o trabalho de campo in loco apresenta. A Palestina, no entanto, ainda que dotada de dinâmicas bastante peculiares que proporcionam mudanças bruscas e repentinas no seguimento do cotidiano local, apresenta, também, uma série de pontos que têm mudado pouco ao longo dos anos, como expressões locais que têm sido construídas, acionadas e compartilhadas pela população local há bastante tempo. Estas expressões são exatamente o interesse de minhas escritas recentes, referentes à minha pesquisa de pós-doutorado pela Universidade de São Paulo.
Tenho buscado refletir sobre como palestinos constroem a Palestina em termos espaciais, para além da rigidez das cartografias geopolíticas – que dividem o espaço em três lugares diferentes, a saber, “Faixa de Gaza”, “Israel” e “Cisjordânia”. Para os palestinos, nesta via, todos os espaços seguem sendo, em termos de categorias de territorialidade, componentes de uma Palestina única. Esta, em acordo com as categorias locais de territorialidade, é composta por quatro espaços distintos, quais sejam a Faixa de Gaza, Jerusalém (como capital), Cisjordânia e, por fim, “dentro” ou “48”. Esta última é referente ao espaço de “dentro da Linha Verde” onde, após 1948, instaurou-se a presença do Estado israelense. Para estas categorias, tudo é ocupação, independentemente das resoluções internacionais que apontam o termo para a presença militar colonial israelense apenas na Cisjordânia. A expressão acionada pelos palestinos entre si é, na maior parte das vezes, “interior” (dentro), em árabe الداخل (al-dakhel) ou, em uma variação terminológica mais ampla, “interior ocupado”, em árabe الداخل المحتل (al-dakhil al-muhtal).
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Ter estas categorias locais ao centro dos referenciais palestinos de espacialidades é de suma importância não apenas para o conhecimento das expressões locais e uma aproximação com as terminologias palestinas locais, mas, também, para orientar pessoas interessadas no país e suas questões. Neste sentido, o conhecimento deste vocabulário local pode, por exemplo, guiar a compreensão de leituras para pessoas que buscam referenciais bibliográficos onde menções a tais espaços se façam presentes. Um exemplo é o livro “Retorno a Haifa”, de Ghassan Kanafani, traduzido por Ahmed Zoghbi, publicado pela editora Tabla em 2023. O livro trata de uma novela escrita pelo autor palestino em 1970, onde um casal originário da cidade de Haifa, dali expulso no ano de 1948 em decorrência da Nakba, retorna ao local após 20 anos.
Aqui, o que serve de inspiração para a escrita de uma obra literária é, também, componente de uma realidade local cotidiana. Neste sentido, de forma resumida, duas perspectivas podem ser tomadas. A primeira fazendo referência à população palestina que, por razões diversas, encontra-se fora da Palestina – seja por migração antes de 1948, seja pelo deslocamento forçado em função da Nakba e o advento da condição de refúgio, ou em relação às gerações que nasceram com pais ou avós palestinos em países outros. Também, pode-se considerar uma grande parcela da população local que, em busca de trabalho ou estudos, compõem uma migração constante, nos dias atuais, para fora do país. A segunda perspectiva faz referência às dinâmicas locais, considerando-se o fluxo cotidiano de palestinos por diferentes espaços. Dito de outro modo, me refiro aos “palestinos de dentro” que frequentam ou vivem na Cisjordânia, também aos palestinos da Cisjordânia que, mediante aquisição de documento permissivo trabalham ou estudam “em 48”, além do trânsito eventual de/para a Faixa de Gaza – este último dotado de dificuldades mais explícitas.
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De todo modo, pensar a Palestina para além das delimitações cartográficas que fazem referência apenas à Faixa de Gaza e à Cisjordânia é pensar a Palestina como a própria população a constrói, em seu todo, enquanto um espaço único. Assim, não apenas Jerusalém é sua eterna capital, como Ramallah e Belém são cidades tão palestinas – e parte da Palestina toda – quanto Yafa, Nazareth e Haifa. A busca por uma literatura que traga a Palestina tal qual construída pela população local, a exemplo do livro de Kanafani, é a busca por uma literatura que traz a Palestina como ela é, em sua totalidade.
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Rafael Gustavo de Oliveira
Rafael Gustavo de Oliveira é doutor em antropologia pela Universidade Federal do Paraná, atualmente cursando pós-doutorado pela Universidade de São Paulo. Tem se dedicado a desenvolver reflexões sobre a Palestina, baseado em trabalhos de campo in loco há cerca de dez anos. Atualmente, reside na Palestina pelo quarto ano, onde realiza pesquisas acadêmicas e, também, leciona violão clássico no conservatório local Al Kamandjati, nas cidades de Ramallah, Jenin, Deir Ghassany e no campo de refugiados de Qalandia. Tem como foco de pesquisa as construções cotidianas locais de territorialidade e suas componentes identitárias. Com isso, atualmente, trabalha em pesquisa e revisão de publicações acadêmicas brasileiras sobre a Palestina, visando apontar aproximações e distanciamentos terminológicos, buscando aproximar as pesquisas a partir do Brasil às expressões locais de espaço e outras.