Confira o texto de Ahmed Zoghbi e a Tradução do poema “Contraponto a Edward Said” (طباق إلى إدوارد سعيد), de Mahmud Darwich

Na introdução de um dos grandes trabalhos de Eric Hobsbawm, A Era dos Impérios, 1875-1914, de 1988, o autor egípcio de origem britânica narra sua própria história como uma espécie de síntese do que se lerá nos capítulos do livro. Descreve a trajetória de dois jovens de classes distintas e que nascem em lugares distantes (uma na capital do Império Austro-Húngaro, Viena, outro na Manchester do Império Britânico), do começo do século XX. Por razões diferentes, os dois jovens viajam para Alexandria, lá se conhecem e lá se casam. Essa jovem austríaca era sua mãe, e o rapaz inglês, seu pai. Dois impérios se encontram no Egito, e desse encontro nasce Hobsbawm. 

Concorde-se ou não com as ideias do historiador egípcio/inglês, não se pode negar que seu estilo historiográfico beira o literário e, talvez por isso, realiza com eficácia seus objetivos. Trata-se do terceiro livro de uma série que busca abarcar os processos de formação, consolidação e crise do capitalismo: A Era das Revoluções, 1789-1848, de 1962; A Era do Capital, 1848-1875, de 1975; A Era dos Impérios, 1875-1914, de 1988 e A Era dos Extremos: o breve século XX, de 1994. 

A escrita de Eric Hobsbawm remete a uma reflexão muito em voga hoje em dia: onde se encontra a fronteira que separa, ou divide, o texto literário dos textos historiográfico, filosófico ou antropológico? Se as ciências humanas buscam na forma literária uma ferramenta que possa abarcar a produção humana como matéria-prima da história, a literatura se vale de conceitos filosóficos para compor a sua própria linguagem. Numa passagem da abertura de uma de suas novelas, Ghassan Kanafani sentencia que “num mundo em que a realidade é toda desordem”, a escrita literária busca oferecer algum sentido à realidade caótica de um universo em chamas. De uma outra forma, a historiografia, a filosofia e as ciências sociais procuram compreendê-lo. Mas se essas ciências operam com a matéria dura, a literatura se vale da imaginação e da criação como forma de ordenamento desse caos.

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Na ocasião da morte de Edward Said em 2003, Darwich compôs um poema em sua homenagem, quase que na forma de um diálogo imaginário, onde se apropria de uma série de conceitos e categorias mobilizados por Said em quase toda sua obra. O título do poema anuncia por onde pretende começar: “Contraponto”. 

Said empresta o termo do vocabulário formal da música erudita ocidental para propor uma forma de leitura e de crítica do texto e do mundo. Ao contrário do que se pode supor, não se trata de contraposição a uma ideia de mundo ou de leitura. Antes, como no caso da música, é um modo de ler os textos culturais que vai além da política de censura, produzindo, assim, uma totalidade harmônica em que não predominam nem o ponto nem o contraponto, mas uma outra coisa, ou as duas coisas. Assim, a crítica contrapontística pretende criar significados multifacetados e mais amplos, de modo que o resultado final é uma espécie de mosaico, onde cada fragmento é parte constitutiva da peça. Como numa composição de Bach, o contraponto não aparece como negação do ponto, mas como diálogo que resulta numa complexidade harmônica, quando não complementar, fundamental para o discurso. Como afirma John Rahn: “As estruturas internas que criam cada uma das vozes separadamente devem contribuir para o surgimento da estrutura da polifonia, que por sua vez deve reforçar e comentar a estrutura das vozes independentes. A forma que se realiza, no detalhe, é o contraponto” (Music Inside Out, 177).

No poema “Contraponto a Edward Said” (طباق إلى إدوارد سعيد), Darwich foi capaz de concretizar as teorias de Said e transformá-las em poema. Alguns dos conceitos e categorias mobilizados pelo poeta são caros ao pensador palestino: exílio e contemporaneidade; a identidade e o não lugar; o lugar do intelectual no debate público e o combate ao apagamento do sujeito na História; o Imperialismo e seu poder colonial;  a violência e a poesia; a Palestina e a tarefa da poesia; o papel do intelectual e da poesia no debate público.

O exílio é o mundo exterior.

O exílio é o mundo interior.

Quem é você entre eles?

(…)

E eu sou o que sou.

Eu sou o último na binária

harmonia entre fala e signo.

Se eu estivesse escrevendo um poema, diria:

eu sou dois em um

como as asas de uma andorinha

(…)

Ele ama um país e o abandona:

eu sou o que sou e o que serei.

(…)

E eu escolho meu exílio

O exílio é o pano de fundo da cena épica.

(…)

E identidade? Eu disse

Ele disse: legítima defesa.

A identidade é filha do nascimento, mas

no final, a criatividade de seu dono; não

herdar um passado. Eu sou o múltiplo em

meu interior renovado… Mas estou.

Eu pertenço à questão da vítima. Se não

fui de lá treinar meu coração

para criar a metáfora dos gazéis.

Então carregue seu país onde quer que vá…

(…)

E a saudade de ontem?

Uma emoção que só pertence ao pensador

para entender o desejo do estranho pelas ferramentas da ausência.

Quanto a mim, minha saudade é uma luta pelo presente

(…)

Eu defendo a necessidade de poetas

do amanhã e memórias.

Eu defendo as árvores que os pássaros vestem

como país e exílio.

E uma lua que ainda serve para um poema de amor.

Defendo uma ideia que foi quebrada pela fragilidade de seus donos.

Defendo um país sequestrado por mitos.

(…)

Nova  Iorque, novembro, Quinta Avenida.

O sol é um prato de metal volátil.

Eu disse a mim mesmo, um estranho nas sombras:

Isso é Babilônia ou Sodoma?

(…)

Quando o visitei em Nova Sodoma,

no ano de dois mil e dois,

ele resistia à Guerra de Sodoma contra o povo da Babilônia

e o câncer juntos,

Ele era como o último herói épico.

Ele defende o direito de Tróia

em compartilhar o romance

(…)

Não, nenhuma vítima pergunta ao seu carrasco:

eu sou você? Se minha espada fosse

maior que minha rosa, você perguntaria

se eu agiria como você?

(…)

Ele diz: O poema pode hospedar perda

como um raio de luz

brilhando dentro de uma guitarra, ou um messias

num garanhão ferido com uma bela metáfora,

A estética é apenas a presença do real na forma

Em um mundo sem céu, a terra se torna 

um abismo, e o poema um dom de consolação

(…)

Eu defendo a necessidade de poetas

Para amanhã e memórias juntos

E eu defendo as árvores que os pássaros vestem:

país e exílio

E sobre uma lua que ainda serve para um poema de amor

Defendo uma ideia que foi quebrada pela fragilidade de seus donos

E defendo um país sequestrado por mitos. *

A Palestina, para Edward Said e Mahmud Darwich, não é apenas um cenário para uma conversa entre um poeta e um pensador. É, sobretudo, a razão de ser do encontro num mundo em descompasso. É o lugar onde os amigos nascem, interagem e se despedem. Um paraíso intangível onde se pode compor um diálogo imaginário.

* Livre tradução, ainda em processo, de poema de Mahmud Darwich, “Contraponto” 

Ahmed El Zoghbi

Ahmed Hussein El Zoghbi - Graduado em Letras Português e Árabe pela USP. Mestre em História Comparada pela UFRJ, com pesquisa sobre a biografia política e obra do autor palestino Ghassan Kanafani. Doutorando pelo Programa de História da Filosofia, da UFS, cujo tema é a dimensão filosófica do pensamento de Edward Said. Membro fundador do CEAI (Centro de Estudos Árabes e Islâmicos). da Universidade Federal de Sergipe.

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