No dia 25 de agosto de 2014, às 12:28, recebi uma mensagem no Messenger: “Oi Safa, estou em São Paulo, no Golden Tulip Plaza Hotel. Cadê você, cadê o Milton? Quero ver vocês dois, não conheço ninguém aqui”.
Era Elias Khoury! Larguei tudo que estava fazendo e disse para ele se acalmar que em pouco tempo estaria com ele. Elias respondeu: “Natrik [Tô te esperando] na calçada, aqui nesse país de vocês não se pode fumar em lugar nenhum!”.
Na época, eu tinha traduzido dois livros dele, Porta do Sol e Yalo, para a Record, a editora que tinha convidado o autor para vir ao Brasil para uma série de eventos. Até então, eu só tinha trocado com ele poucas e breves mensagens por e-mail.
Fui até lá. A gente se sentou numa mesinha na área lateral descoberta do hotel. Ele pediu café para nós e, enquanto bebericávamos, fumou por nós dois. Depois de reclamar um pouco do tempo e do hotel, “Só falam burtuguesi”, sugeriu que saíssemos para caminhar um pouco. Eu avisei para ele que a cidade era gigante, que não estávamos em Beirute! Caminhamos por algumas ruas e chegamos à Avenida Paulista. Então ele parou e disse: “Essa cidade se parece com o Cairo e tem o mesmo cheiro”. Eu senti que ele estava dizendo: “Nenhuma cidade tem o cheiro de Beirute”.
Naquele dia, falamos de tudo: política, literatura, tradução, comida, doces, e compartilhamos histórias engraçadas e outras tristes. Depois de algumas horas, ele disse que estava com fome e que queria comer carne. Fomos ao restaurante que ficava em frente ao hotel. Tomamos vinho, comemos e falamos, falamos… Na verdade, eu escutei, porque Elias, o contador de histórias, estava ali iluminando o ambiente escuro com sua prosa.
Nos poucos dias que esteve em São Paulo, ele encontrou com Milton Hatoum, participou de um evento com ele e comigo, passeou com outras pessoas para conhecer a cidade, visitou o parque do Ibirapuera e a rua 25 de março, e, no dia que ia embora, me ligou de novo. Fui até o hotel, levando comigo um presente para sua filha, que ele tinha me pedido para comprar. Arrumei sua mala, nós nos despedimos e ele me disse: “Te vejo no Líbano”.
O tempo passou, os anos voaram e fomos trocando algumas mensagens. Em 2022, já por Whatsapp, ele queria saber como ia a tradução de Meu nome é Adam, se eu tinha lido o segundo volume da trilogia, o Stella Maris. Eu tirava algumas dúvidas com ele, e ele me contou que já estava escrevendo o terceiro volume. Chegamos a estar juntos numa aula on-line no curso “Brasil e Palestina: Fontes de identificação”, promovido pela USP e seis universidades palestinas.
Em julho, de 2023, mandei uma mensagem para ele, dizendo que ia para o Líbano e que queria vê-lo. “Bem-vinda, todas as casas são suas!”, ele respondeu. Quando cheguei, fique sabendo que estava hospitalizado.
No dia 29 de maio de 2024, Elias me mandou uma mensagem carinhosa: “Diga ao Milton que em alguns dias saio do hospital e vou escrever para ele a respeito da resenha que ele escreveu sobre Meu nome é Adam. É o melhor texto sobre o livro até agora”. Estava falando de “Vozes da memória”, publicado na edição 64 da revista Quatro Cinco Um, que foi traduzido para o árabe por Yara Osman e enviado ao Elias. Mas ele não escreveu, não pode escrever, não deu tempo…
Hoje, com a notícia de sua morte e em meio às lágrimas, lembrei da mensagem que me enviou em 13 de março de 2021: “Estou pensando na palavra ‘saudade’ e tentando encontrar uma equivalente em árabe, posso te ligar?”. Ele ligou e conversamos longamente; tentei explicar o que era saudade, recorrendo também ao que disseram alguns escritores sobre esse sentimento. Ele me perguntou: “Quer dizer que é possível sentir saudade do que não se viveu?”. Eu me calei. Nos despedimos.
Elias adoeceu e em uma das últimas mensagens de voz que enviei a ele, para animá-lo, contando que logo o Stella Maris seria lançado em burtuguesi, ele me respondeu com um fio de voz: “Tislame, ykhalilna iyyake [Que Deus lhe preserve para nós]”.
Elias Khoury, meu mestre e amigo, eu prometo que vou acompanhar Adam e contar sua história para os leitores no Brasil. Vou contar do menino do gueto de Lidd, vou contar da dor da Palestina, que se tornou a sua dor. Prometo que vou fazer isso, sentindo uma saudade enorme de você.
Safa Jubran
15/09/2024
Safa Jubran
Safa Abou-Chahla Jubran nasceu em Marjeyoun, Líbano, em 1962, e chegou ao Brasil em 1982. É professora livre docente na Universidade de São Paulo, onde leciona língua árabe desde 1992. Obteve os títulos de Mestre e de Doutor em Linguística na mesma universidade.